quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Texto da minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha

A Moça Fantasma do Beco do Funil

   Tinha as seguintes palavras tatuadas no corpo: “Sou loura, trêmula, blândula e morena esfogueteada. Ando na rua a meu lado, colho bocas, olhos, dedos pela esquerda e pela direita.” Eram versos do poema “Desdobramento de Adalgisa”, de Carlos Drummond de Andrade. Mas, a Moça fantasma não os escolhera. Não escolhemos os poemas. Eles nos escolhem. E a escolha é porque Ela também se chamava Adalgisa. O poema escolheu a Moça. Nome de musa. Mãos de Bruma. A Adalgisa do Beco do Funil. A Moça que se alimenta das noites ardentes e que bebe as sombras indivisíveis. A Moça Fantasma que não sente o amor respirar. Para ela, o amor pulsa, mas não respira. Pula, mas não respira. Por isso, a Moça espia. Todas as noites ela anda pelo Beco do Funil.  Anda e ninguém a vê. Apenas a sente. É possível sentir seu perfume de buganvília doce. É possível sentir sua presença de fantasma, dorzinha leve, leve, aceno estomacal. Vê-la, no entanto, é impossível. O seu vestido cor-de-arco-íris ninguém repara. Ninguém elogia. Ninguém inveja. Ninguém brinca em suas curvas de Moça sonora. Tocá-la em seu silêncio de desencontro é um gesto perdido que muitos bêbados já tentaram naquele Beco escuro. O que conseguiram? Só mais um gole de susto.
   Ela não fala. Tem o silêncio dos fantasmas. Sua voz são luzes que aparecem e desaparecem, feito pirilampos. De vez em quando ela sente uma inquietação religiosa, pois o sino da Matriz de São Miguel é tão vocálico que espasma os desejos de Moça Fantasma. Mas logo voltam os desejos. O Beco os recupera. O Beco é seu hábito. O Beco é seu marido. O sonho da Moça Fantasma era ter um marido. Ela queria se casar, ter filhos, ter uma família. Mas Fantasmas não casam, é cláusula pétrea de Fantasma. Fantasmas estão presos na eternidade. Fantasmas estão nas Pedras da Cidade. Deve ser porque não pode casar que Ela nunca entrou na igreja. Todo casamento que acontece na Matriz a Moça chora, do lado de fora. De casamentos ela não gosta. Ela chora o choro da Chuva. Chora o choro do gigante Polifemo. O choro dos poetas árcades. O choro melancólico dos poetas mineiros. De vez em quando também seu corpo brinca de iluminar as águas do rio. Ela gosta de se olhar no espelho do Jequitinhonha. Não fica muito tempo assim. A alegria logo, logo é levada pela correnteza. A alegria é um desaguar passageiro.
   O que a moça tem até parece quebranto. Não é não. O que ela tem é calundu de peito e pirraça de alma. Dói nas entranhas impreenchidas. Uma dor capaz de afetá-la. Capaz de endurecer aquele corpo fantasma. O que a moça tem é algo que só vem em véspera de natal. Um querer incompreendido, suspirante. Um querer de família. Algo que vem nas bordas dos ventos de dezembro. É o natal sim. Nada a ver com Papai Noel não. Tudo a ver com sentimento. Nessa época do ano a Moça Fantasma do Beco do Funil perde o desejo de assombro. E o que ganha mesmo não são presentes. É dor. Dor da falta de um abraço. A moça não tem memória não. Só há a tatuagem. A tatuagem é sua identidade. Tatuagem que ninguém vê. E a tatuagem também queria um abraço. Queria sentir outro corpo. Queria entender essa sensação. Ninguém vê. Porém, nas noites de natal a Moça Fantasma do Beco do Funil se senta sobre a caixa d’água da Copasa.  Ela fica em silêncio escutando as ceias. E a alegria que sai das casas a cega. Nesta noite a Moça Fantasma não pode ver. Nesta noite ela percorre todas as ruas de Jequitinhonha sem levar uma lembrança sequer. É a única noite que ela se afasta do Beco. Aquele Beco que olha a cidade. Aquele Beco que escreve histórias. O seu Beco. A sua residência. Pena de musa. Bico de Noite. Lugar de mistério. O Beco do Funil, que afunila várias vidas. O Beco. O Beco da Moça Fantasma.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Violino em Cordas de Prosa

De noite ainda vejo o violino quebrado sobre a cama. Minhas palavras vastas escorrem em cordas de voluptuosidade, afagando geometricamente tuas coxas de marfim. O nosso poema, Violino Maria, de Juan José Ceselli, ainda me olha solitário. Solitário e perfumado. Solitário e uníssono. Sua voz ainda está nele, perfumada. Seus brincos ainda estão nos meus bolsos, gastos. Os dois, ambiguamente. Não sei. Talvez, eu jogue dominó hoje. E olhe a lua pela sacada, imaginando que tua bunda seja uma peça de Cacilda Becker. Ouço o violino, oco, oco, oco. Abro o baú no sótão. Só há uma boneca estilhaçada. Os braços dela lembram os seus: um cometa Halley. Ouço também nosso grilo de estimação. Escutei-o a noite inteira. Montes Claros faz calor. Sei que é mesmice. Lembra quando falávamos banalidades? Nunca enchi o saco desta límpida loucura que vivemos, das nossas brincadeiras de vidro. Ontem, fui à rua dos cataventos. Nosso último beijo ficou lá. Lá deixei também meu último verso pra você. Aquele mesmo que escrevi em sua lápide secreta: há tanta pedra que procuro o calor de seu líquido sarcástico.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

um poema qualquer, feito dos suores da palavra...

Girassol

O suor pinga na mesa de barro
                                                     E um vago ai de Penélope o assusta.
                 Um gemido rouco
                                               Transparente
      bebe o suor em três beijos  
                           Beijos de varanda
           Beijos cor-de-sol
                           Beijos calados de uma moça feroz que pintava o muro
            com o sangue e o sarcasmo da chuva.

sábado, 13 de novembro de 2010

Texto pertencente a minha coluna no jornal Informativo

Um Jequitinhonhense na Biblioteca de Mário de Andrade
Agradecimentos a Fernando, da Heferauto, memória viva deste município.

Já era tarde da noite e a solidão o consumia. Nada consome mais um autor do que a solidão essencial de sua obra. Ele queria terminar o livro “As Revelações do Príncipe do Fogo”, mas não conseguia. O barulho no quarto era mais alto do que o som das palavras, que se contorciam em cheiro de latrina e vozes de insurreição. Então, ele se imaginou na Biblioteca de Babel. Gostava de se imaginar ali, onde a vida não tinha feridas. Onde as prateleiras não excluíam ninguém. As paredes da Biblioteca de Babel foram erguidas por tijolos de vidro, mágicos tijolos que duplicavam a ilusória biografia dos homens. E os livros desta biblioteca nunca se repetiam. Os livros repetidos sempre pegavam fogo e viravam pássaros mudos. A biblioteca parecia imensa. Tão imensa que nem Deus a compreendia. O curto transe fora interrompido, a janta chegara. Sopa novamente. No manicômio onde vivia era assim, a sopa possuía uma fidelidade que os homens desconheciam. Depois de tomar a sopa, deitou-se e pôs-se a pensar na vida. A cicatriz tatuada no peito ardia como o livro que ainda não conseguira terminar. Na tatuagem estava escrito: o filho da luz. Nada anormal para alguém órfão. Começou, então, a refletir sobre o seu nome. Chamava-se Febrônio Ferreira de Matos Índio do Brasil. E o personagem principal de seu livro se chamava Pedro. Ambos eram pobres, negros, homossexuais, loucos e assassinos. Coisa típica dos mágicos tijolos da Biblioteca de Babel, misturar autor, obra e personagem. Os mágicos tijolos gostavam de escutar a voz das minorias.
Febrônio ainda sentia as fortes dores do último tratamento de choque. Curiosamente, ele contava os hematomas que tinha no corpo. Tinha que dar número ímpar, pois ímpar era sorte, queria dizer que ele não apanharia. Porém, muitas vezes o ímpar foi insuficiente. Febrônio, portanto, tomou birra dos números. Mesmo assim, sonhava com o dia em que o número de seus hematomas ultrapassasse o número de livros da Biblioteca de Babel. O único amigo de Febrônio no manicômio era Zeus, uma lagartixa sem rabo. Zeus era uma branquela azeda. E tinha esse nome em homenagem ao Deus mitológico grego. O Zeus da mitologia foi famoso por sua infidelidade. O Zeus lagartixa também, não podia ver um rabo de lagartixa que logo se assanhava. Febrônio conversava muito com Zeus. Guardava até sopa para ele. E ficava furioso quando Zeus não o visitava. “Deve estar pendurado em algum rabo de lagartixa!”, exclamava. Sete dias após a primeira tentativa de terminar seu livro, Febrônio finaliza-o. Nesta noite não quis visitar a Biblioteca de Babel. Seus pensamentos estavam ocupados demais. Ele, agora, pensava em fugir do manicômio. Até a conversa com Zeus fora rápida. O que disse foi apenas um: “Amigo, até breve, volto quando for famoso!”. E Zeus foi correr atrás de outro rabo de lagartixa. Depois da comovente despedida, Febrônio consegue abrir a porta do seu quarto com um palito de fósforo, que ele transformou em chave. Depois, ele correu para o pátio do manicômio e fugiu nas asas de um ébrio pirilampo. Na rua, Febrônio começou a visitar os bares do Rio de Janeiro para vender seus treze exemplares de livro, que conseguiu tipografar no manicômio. Em visita à Lapa, encontra-se com o historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, que compra um dos livros de Febrônio. Logo em seguida, a polícia carioca realiza uma operação policial no bairro da Lapa e prende Febrônio, que tentava vender o terceiro exemplar de seu livro. Ele não conseguiu. Foi preso antes, morrendo velho e cansado, em 1984, no mesmo manicômio de que fugiu. Zeus também morre no mesmo dia, deixando cento e sessenta e nove lagartixas viúvas. Há quatro anos, o cineasta e professor da USP Carlos Augusto Calil encontrou o segundo exemplar do livro de Febrônio na biblioteca do gênio modernista Mário de Andrade. Este exemplar tinha na capa os seguintes dizeres: “Admirável!” e “erudição deliciosa!” Febrônio, então, conseguira a solidão essencial e outra coisa mais: ser o único jequitinhonhense presente na Biblioteca de Babel.
mais textos no link:http://www.jequinet.com.br/jornal_informativo/jornal_informativo_noticias.htm

domingo, 31 de outubro de 2010

Este texto pertence a minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha

Duas Mortes

Saiu de casa apressado. Não beijou a filha. Não se despediu da mulher, que levantou às cinco da manhã para preparar-lhe o café. E não percebeu que Pois é, o cachorro da família, estava solto na rua. Zeca pé-de-boi, apelido que recebeu quando foi o Boi Janeiro, na cidade de Jequitinhonha, não tinha tempo para mais nada. Nem para sorrir. Ele se mudou para Contagem há quatorze anos. E nunca mais retornou à Jequitinhonha. A mulher e a filha eram loucas para conhecer a terra natal do Marido-Pai, mas Zeca desconversava. E sempre adiava a viagem. As insistências da mulher e da filha traziam de volta lembranças, que causavam uma dor breve, escorregadia, certeira.
À noite chegou do trabalho, cansado. Jantou em silêncio. A mulher já dormia. E a filha estava no quarto, conversando com as amigas no MSN. Pois é tinha voltado para casa com um osso grande e procurava enterrá-lo no quintal. Zeca era cruzeirense doente. Não perdia uma partida do time na televisão. Mas, nunca assistiu a um jogo no Mineirão. As multidões não mais o interessavam desde que deixou Jequitinhonha e o Boi de Janeiro. Levava uma ausência que não conseguia compreender. Levava um silêncio que não o deixava sorrir. Todas as noites ele cochilava no sofá antes de se deitar. Aproveitava a dispersão da filha e da ausência da mulher para lembrar das peladas que jogava na praia. Nunca fora habilidoso, mas fazia muitos gols. Esses gols fizeram com que ele fosse, enquanto morou em Jequitinhonha, o artilheiro do Internacional. Orgulhava-se disso. Tinha uma camisa do time guardada no fundo de seu guarda-roupa. Fez dois gols contra o Náutico, na final do campeonato de 1983, que foram inesquecíveis. Neste dia, deu até entrevista à rádio Santa Cruz.
Porém, o que guardava mesmo, só que no guarda-roupa da memória, era o Boi de Janeiro. A música não saía de seus ouvidos: “Povo de Jequitinhonha/Venha apreciar/venha ver o boi janeiro/que aqui não há/ Povo de Jequitinhonha/venha dar valor/venha ver o boi janeiro/passando em flor”. Quando se caracterizava de Boi e corria atrás das crianças pelas ruas de Jequitinhonha, esquecia-se de si, do cansaço, da vida. O Boi era sua armadura contra a vida difícil. Tempos difíceis aqueles. Mais difícil ainda foi sua decisão de ir embora e deixar a sua armadura. Entretanto, tinha que ser. Não somos senhores de certas escolhas, isso que é. Zeca também levou embora um pesar. Na sua despedida, como Boi de Janeiro, teve uma dor diferente, mais escorregadia e certeira do que de costume. O povo entoava “e o bofe/ é de seu Jofre/ ai ai ai janeiro morreu” e escutaram uma janela se fechar. O Boi de Janeiro fora substituído por novelas. Isso entristeceu Zeca. Ele teve a sensação de que o Boi tinha morrido. No outro dia, decidiu ir embora para nunca mais voltar.
Acordou sonolento no sofá. Era hora de trabalhar. A mulher e filha não tinham levantado ainda. Decidiu, então, não acordá-las. Foi para o trabalho mais cedo. Sentia-se estranho. No ônibus, queria ficar sentado sem pensar em nada. Mas, a música vinha cada vez mais forte, escorregadia, certeira. Aumentava cada vez mais. Saiu sôfrego do ônibus e no pátio da empresa não conseguiu ficar em pé. Caiu. Teve um enfarto fulminante. A mãe e a filha decidiram que ele seria sepultado em Jequitinhonha. Lá, já no caminho da capela do hospital São Miguel para o cemitério, os amigos começaram a cantar a música do Boi de Janeiro. Estranhamente, a Mulher e a filha de Zeca, agora, compreendiam o silêncio dele. Estranhamente, dentro do caixão, Zeca parecia sorrir. Um sorriso que não se via desde que saiu de Jequitinhonha. Um sorriso do Boi de Janeiro passando em flor.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Este é um poema que não pertence a nenhum livro, pois nenhum livro o quer.

Catarse métrica (uma poesia in-significante)

Nenhum anjo me guarda
me governa
me zela
                                                                 Nenhum anjo me anuncia, Gabrielamente.
                                                      Minha cruz está só com seu coração vadio e suas chagas tortas.
                             E dragões incendeiam o poema, brincando de piromania na porta da linguagem, confusa.
                                      Do outro lado, não sei se do poema ou da vida, Cérbero ri seu riso de cão
Que se repete
Que se repele
Que se repete e se repele
inquieto aqui dentro.
                                            Dentro de mim há um anjo sem asas que arranha o céu, Fora. Fora de mim
                    um anjo alquimista assanha a terra com suas palavras quebradas, Dentro.
Dentro e Fora do verso,
Fora e Dentro do verbo,
Resta o Dado e o Acaso.


quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Poema pertencente ao livro Nós em Sentido D'água

Paisagens







                                                                                                                      No canto do muro
                                                  o homem-esquadro
esculpi a sua cicatriz banguela.

            Sobre o mastro da bandeira
                                                        sem nenhum pudor
                                                        a andorinha defeca
                                                        a sua bosta cerúlea.

Atormenta-me o chaleirar do cão
e o atrevimento da sirene.

                                                   Ouço a algazarra do ócio
                                                   no calabouço escultural da noite.

Tudo é imagem
ao som dos goles de cerveja.

Poema pertencente ao livro Nós em Sentido D'água

Epitáfio


Minhas mãos rastejaram pelos dias esburacados
como um verme.
E o botão da tua blusa estourou-me
as lembranças.
Caí
Caí no poço da insônia
bebendo o último gole de prazer.
Olhei-me na poça funda de Caim,
criada pela última chuva
e sujei-me da lama podre do teu despudor.
Fostes tu, ò poesia,
Foste tu a minha esmola e a minha sífilis
Foste tu, sossegadamente venenosa,
a minha louca assassina.

Poema pertencente ao livro Palimpsesto de Luz

Esquina Invisível de Minas





Lá, no espaço branco da montanha,
no vento aguardente e vazio,
as montanhas de Minas se perdem além da procissão da memória.

A poesia, lá, é vaga-lume
é Vagabunda
é Vagar
A poesia vaga devagar,
riso bordado lavrador,
mão calejada de barro,
água suja de cultura.

Os homens-boi de lá
Os homens-peixe de lá
Os homens-pedra de lá esperam a esperança sem medo sem nome sem miséria sem quebranto.

Lá, estrelas se acendem sem querer
respiram o cansaço do chão
e rimam a música que escorre do corpo
que escorre da fala
que escorre da solidão.

E bem longe do horizonte,
o rio engole a terra que engole o ouro que engole o trabalho que engole a angústia que engole a fome que engole o homem que engole o desejo que engole o amor que engole a vida.

Lá a vida se bebe em goles de pôr-do-sol ao lado do fogão de lenha,
palavra forte, resistência.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Texto produzido em parceria com a minha indizível amiga, Elaine Maciel.

Armazém Metodológico

Tudo nos espiava. As mesas vadias, os copos sentimentalistas, os buracos incandescentes do teto e as bonecas de porcelana do Mercado Municipal. Traziam de fora o vento e um cheiro indiscreto que subia pelas nossas narinas num ímpeto criador. Que foi este cheiro a nos embriagar com tal torpor? Confessamo-lhes, óh desavisados leitores, não sabemos. Afinal, a imagem evocava outra imagem e, misteriosamente, surgiu a vagabunda enlouquecida que dizia ser O Cheiro de Deus. Vagabunda alegórica esta. Vagabunda metafórica esta. Vagabunda sem rosto-desgosto, entre o não-ser e o ser tão. Aconteceu que, num movimento erótico, a obscena senhora vagabunda inscreveu em nossas carnes o desejo de transgressão. Fale vagabunda! Ande perto dos corações selvagens! Grite sonoramente a cidade ilhada! Coma a feijoada de Seu Belo! Dance o olhar melancólico de Emílio Moura! Divirta os desatinos dos vadios! Desvista-se da Menina do Sobrado! Olhe-se no espelho e veja, e reveja sua face Iracema, Senhora, Lucíola. Não, a vagabunda não respondeu. Vagabunda que se preza não cumpre imperativos, canta em vozes ressonantes as poéticas libertárias, o não-senso, a não-ordem. Abaixo o despotismo! Vagabunda que se preza rasga a roupa; escancara o peito; vomita o verbo; e cospe as imagens, sons e palavras em suor maior. Vagabunda que se preza apunhala o coração destoante e destoado com o veneno ambivalente da literatura infantil. Vagabunda que é vagabunda reinventa o poder do sertão, colhe os últimos gemidos da lavoura arcaica, destece a luz do risco bordado e abre uma fissura incalculável no corpo da pedra-educação, do espelho-duplo. No sem margem da memória, onde o Cheiro de Deus nos estuprou, restou a imagem perdida da Vagabunda enlouquecida, vagando o mundo escondido nos cantos sujos do armazém. Neste armazém de palavras, a vagabunda se divertiu e riu de nossa cara pasma. Riu, demoradamente, de nossa falta de inspiração. De nossa dor verbal. Riu, porque sabe que é fantasma. Nosso fantasma. Criação de aprendizes. Parte insignificante desta tentativa de contar. Um contar estranho que se intitula palavra, um esquecer para lembrar.

*Este texto foi escrito no mercado municipal de Montes Claros, acompanhado da musa cerveja. Ele tem apenas uma má intenção: contemplar os projetos do mestrado em Letras/Estudos Literários, da Unimontes. A ideia de escrevê-lo nasceu nas aulas de metodologia da pesquisa, ministrada pela professora Telma Borges.
*Este texto está disponível também em: www.cch.unimontes.br/literatura.

Esta poesia faz parte do meu livro Palimpsesto de Luz

No Nada



é a luz
matéria onda energia  que dorme
que se desintegra
 (branca) vermelha preta

é a luz este astro silencioso,
este astro
que arde nulo.
                                é luz o Gênese
é luz o Apocalipse
                                                               é
  luz
        a
           substância
                              que
                                    despenca              
                                                           que gravita no espaço

                              céu
e que encontra o       no absoluto.

Texto publicado este mês em minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha



As Eleições e o Quarto Poder
 De gustibus non disputandum. Este provérbio latino significa, popularmente, o famoso “gosto não se discute”, espertamente utilizado por quem quer escorregar da boa e velha discussão. Não acho que seja inútil questionar com um indivíduo sobre as decisões do seu gosto pessoal, sobretudo, quando este gosto envolve o futuro de uma nação. Adianto, porém, que ao me referir a gosto não me refugio apenas no consenso humano, que elege sempre um bom e um mau, um ladrão e um mocinho. O que me interessa aqui também é alguma coisa mais que a preferência pessoal, algo que se baseie em princípios, embora poucos e elementares, incontestáveis. Isto é o que defende Winschester, professor de literatura inglesa na Universidade Wesleyana. E é isso que suponho que sai da área da crítica literária e se aplica à atual impressa brasileira.
O que vi nos últimos meses, estupefato, foi uma imprensa manipuladora e catilinária que fundamentada em acusações parciais, agiu como partido político e instituiu um perigoso quarto poder na nossa, ainda ingênua, república. Sim senhores e senhoras, moças e rapazes! Engana-se quem achou, como eu, que existiam apenas três poderes. No Brasil, Montesquieu foi vilipendiado por uma imprensa clériga, absolutista e golpista que se esconde por trás de falsos princípios democráticos para acusar a esmo a candidata governista Dilma Rousseff. E deu certo. Conseguiram um segundo turno. Agora, tentarão ganhar as eleições a todo custo. A campanha já começou. Denúncias requentadas sobre o caso Erenice retornam às páginas da Veja e da Folha de São Paulo e aos imperiosos veículos de comunicação da Rede Globo. E tenho a certeza de que não será só isso. Não sou nenhum Nostradamus. Mas, podem acreditar em minha previsão: virão mais denúncias vazias aí, do tipo “Dilma ordenou que cortassem a perna do Saci Pererê!”; “Time do Dunga foi sugestão de Dilma”; ”Dilma privatizou bochechas do Quico”; “Dilma foi amiga íntima de Judas”;”Dilma inventou a vuvuzela”...
Ironias à parte, o princípio elementar destas eleições brasileiras e, portanto, incontestável, é que a mídia, com raríssimas exceções (revista Carta Capital e Agência Carta Maior), apóia o candidato do PSDB, José Serra, mas, afirma, categoricamente, que não. Aí pergunto a vocês: por que a imprensa brasileira não faz como a imprensa americana, que declara, antes das eleições, quem apoiará? Por que a imprensa não dá o exemplo, já que se basofia de ser a porta-voz dos princípios democráticos? Convicto, então, de que gosto se discute sim e do compromisso do jornal Informativo com a democracia brasileira e, principalmente, com a liberdade, declaro meu apoio à candidata do PT, Dilma Rousseff, pois acredito que o modelo de gestão do PT conseguiu conciliar, imensamente, desenvolvimento econômico e desenvolvimento social. Além disso, o Brasil, com Lula, deixou para trás um complexo de colonizado e pôde conquistar sua cidadania internacional. Assim, eleger Dilma é votar no continuísmo e evitar que velhos fantasmas, como o do desemprego, das privatizações, da recessão econômica e do arrocho salarial retornem ao país. Votar em Dilma, acima de tudo, é acreditar em si mesmo e sepultar de vez o projeto FHC, a Dona Maria, a Louca, da política tupiniquim, que abandonou suas teorias sociológicas, fazendo com que a economia nacional se arrastasse nas migalhas do capital estrangeiro e que o brasileiro ecoasse um jeito cabisbaixo jamais visto.
Mas, apesar de ter esta posição confessa, não vou pedir aqui votos à Dilma, o que seria cômodo, uma vez que ela obteve 66,43% dos votos em Jequitinhonha. E tampouco quero aqui convencê-lo, amigo leitor, de que meu gosto deve prevalecer, embora ele tenha lá seus princípios poucos e elementares aos quais já me referi neste texto. O que quero, na verdade, é pedir que você tome cuidado com o que ouve ou o que lê. O que quero é que o povo cada vez mais discuta a política, colocando-a como assunto cotidiano. O que quero é que você assuma seu gosto e defenda-o, pois só assim evitaremos que a mídia, órfã da monarquia, institua-se como quarto poder na república e dite o que devemos fazer e como devemos pensar.