domingo, 20 de fevereiro de 2011

Texto do mês de fevereiro, em minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha.

Jequitinhonha em três atos

Certos olhos de ressaca, faceando a rútila sílaba do Cruzeiro do sul. “Teu olhar me tirou daqui”. Este verso da música “Encontro”, de Maria Gadú, aplicaram-se ao narrador. O narrador que não viu mais além nem aquém daqueles olhos. O narrador que fora vendado pelos olhos pensantes dela. No texto, quando o narrador se ausenta, por um motivo ou por outro, quem assume são as personagens. Os olhos de ressaca fizeram o narrador se ausentar, deixando-o inerme. Portanto, os olhos não são mais do narrador. São meus. O meu nome é João Kerouac. Nasci em Jequitinhonha, em fevereiro de 1979. Ano de dilúvio e enchente. De enchente e dilúvio. O meu pai falecera no mesmo ano em que nasci, levado pelas caudalosas águas do rio. O rio que lhe deu a vida como canoeiro também tirou-a. E minha mãe, mesmo magoada com o rio, sustentou-nos com o dinheiro das águas do Jequitinhonha. Ela era lavadeira. Morreu ano passado sem ter realizado o sonho de ver o rio pela última vez. Ela dizia que o rio tinha o intempestivo temperamento do meu pai. E que nas noites de lua cheia, quando o brilho da lua era refletido nas águas espelhadas do rio, ela via meu pai navegar... Cresci sem esse poder.
Fomos embora de Jequitinhonha quando eu era menino. A rodoviária velha fora nosso ponto de partida. Hoje, ela não existe mais. Jequitinhonha se moderniza. E minhas memórias sentem uma melancolia de pedra, de ruínas. Tive essa mesma sensação lenta ao ver que o cinema se transformou em supermercado. Onde está aquele menino que achava a sua vida um “Cinema Paradiso”? Onde está o menino e suas estórias bonitas de Robinson Crusoé? Digito mais algumas linhas e vou à sacada do Hotel Bela Vista. As palavras não me respondem. O rio também não. O vento pára em meu rosto. Olho a pedra do Sapo. Será mesmo que existe uma Sereia morando embaixo da pedra? Resolvo descer para o bar do Hotel. Peço uma cerveja. A cerveja está gelada como a brisa que vem do rio. Venta forte. E uma frase atravessa o vento enunciador que sopra incessantemente: “Não há viagem sem reencontro com Ítaca”. Eu me reencontrava com a minha Ítaca vinte e seis anos depois de ter partido. Subo para o quarto e tomo um banho. No bar do hotel, soube que Geraldo Azevedo faria um show na praça de Eventos. O reencontro com Jequitinhonha, a minha Ítaca, torna-se ainda mais simbólico. O meu retorno se mistura ao bicentenário da cidade.
Na praça, o poeta Gonzaga Medeiros lê alguns versos seus e alguns do poeta Cláudio Bento. Noite de poesia e música. De música e poesia. Orfeu em busca de sua Eurídice. A poesia de volta à música. Compro mais uma cerveja. Agora, do isopor do Vladimir Soares. Em pouco tempo, ele se apresenta. Vende cerveja e recolhe as latinhas. Consciência ecológica da qual se orgulha. Orgulha-se também da mãe. “Hoje, ela está doente. E eu cuido com todo carinho de quem um dia cuidou de mim. Meu sonho era fazer Administração. Estudar é bom. Queria ter um diploma superior. Mas, a mãe adoeceu. Tive que voltar de São Paulo para cuidar dela.” Os olhos do Vladimir se desviam da nossa conversa. O motivo era a moça de sorriso florido. A moça que vendia água de coco Rocinha. Samanta é o nome dela. Orfeu em busca de sua Eurídice. Vladimir em busca de Samanta. Ela não sabe, talvez, desconfie. Vladimir é apaixonado por ela. Deixo-os sozinhos. Vladimir diz sua última frase notívaga: ”Lembre-se, o dinheiro pode comprar quase tudo, só não compra o amor e a morte”.  Geraldo Azevedo já cantava a música “Você se lembra”. Comprei mais uma latinha de cerveja e fiquei ali onde era o Cascudão. A vida e suas ausências. A vida e suas lacunas. Olhei para as águas do Jequitinhonha. O brilho da lua era refletido nas águas do rio. Então, vi o meu pai navegar com sua canoa. Lembrei da minha mãe. E entendi, então, o Vladimir. E entendi o narrador, perdido, eternamente, naqueles olhos de ressaca. Olhos que queriam levá-lo para dentro. Os olhos do rio queriam me levar para dentro dele como os olhos da moça queriam fazer com o narrador. Senti-me como se o tempo corresse ao contrário. Senti-me como se eu fosse o Benjamin Button.