Visita ao Vampiro de São Pedro
Cheguei ao distrito de São Pedro do Jequitinhonha depois de quase dez anos sem visitar o lugar. Acompanhava as mudanças somente pelas cartas que o Vampiro me enviava, contando as novidades. A aposentadoria dos velhos escaleres ainda provocava uma estranheza vazia e doída. Lembranças da travessia vagarosa, de mãos no rio, pareciam aquietadas. Só o vento tinha jeito de infância. O lajedo ainda possuía o mesmo brilho, mas o motor do barco não dava muito tempo para contemplações. Meninos jogando tarrafa, em busca de peixe ou de estórias; Casais namorando dentro d’água, ensinando-nos a expressão do amor molhado; Lavadeiras de sorriso fácil e de vestidos coloridos; A algazarra do mercado; Os campeonatos de argolinha; E a bola rolando frenética no campo de futebol pertenciam ao passado. Não sei se meu ou do Vampiro. Absorto com tudo aquilo, parei na rua Tamburi. A partir dali devia seguir as instruções do mapa feito pelo Vampiro. Atravessei o córrego Tamburi e entrei em uma trilha descuidada e triste, repleta de tanajuras. No final da trilha havia um barranco que eu deveria subir. A casa do Vampiro ficava lá em cima. Ele estava na varanda cinza, sentado com seu chapéu de palha, sua bengala azul ao lado e sua capa preta inseparável. Perto dele ainda estavam a vasilha de doce de leite e o abandonado “Berro”, enfeites naturais. Na varanda só havia uma cadeira desbotada de onde o Vampiro observava as suas terras enfezadas. E na porta de entrada, dois imensos quadros davam as saudações. Um com a imagem do Bicho da Fortaleza, vários escritos indecifráveis e uma palavrinha minúscula e visível, a única: amigo. E outro com a fotografia de Ângela Ro Ro e uma tarja branca no pé do quadro com a letra da música “Simples Carinho”, a preferida do Vampiro. Dentro da casa tudo estava adormecido. A mesa, onde ficavam a antiga máquina de escrever, a rapadura (o Vampiro não gostava de sangue, mas de rapadura) e o requeijão, preferencialmente, escuro; A cadeira, que servia como guarda-roupa e como comodidade para visitas, praticamente escassas; Um aquário cheio de lodo e de lambaris do Jequitinhonha; Uma cama constantemente desarrumada; Uma coleção do jornal Geraes, que circulou no Vale de 1978 a 1985; E uma carta que recebera de Francelino Pereira, ex-prefeito de Jequitinhonha. A carta era o xodó do Vampiro. Fora uma resposta às reivindicações e aos abaixo-assinados que os moradores de São Pedro fizeram no início da década de oitenta contra o governo de Francelino. “Naquela época, o distrito de São Pedro sofria com o abandono, com a destruição que a enchente de 79 causou e com a violência policial do cabo Antônio e do capitão Getúlio Valadares. Após o misterioso assassinato do cabo Antônio, a violência se intensificou. Pegaram o meu amigo, o balseiro Juscelino, e Lero Hora Errada para Cristo. Aí tivemos que reagir”.
Essa era uma das raras vezes que a fala do Vampiro deixava o tom amargo e monossilábico. Por isso, mesmo tento escutado esse caso por diversas vezes, sempre ficava atento, procurando um novo acréscimo de personagens ou palavras. “São Pedro lembrava a França de 1848. Francelino teve que nos atender. E como bom político que foi, mandou-me esta cordial carta que guardo com respeito.” O Vampiro alisava a carta, mas, na verdade, queria alisar o tempo. Olhou pela janela. “Sabe aquele Tamarindeiro? Brincava lá na minha infância. Ficava horas e horas sentado em suas galhas, esperando os canoeiros descerem o rio, cantando beira-mar.” O Vampiro se calara. Percebi que era hora de partir. Despedi-me dele com a sensação de que nunca mais o veria. Não existia espaço para o Vampiro no São Pedro moderno. Tudo estava diferente. Naquele São Pedro a figura do Vampiro andava desapercebida. O que restava era a poeira da rua. Só a poeira da rua continuava a mesma, soprando as lembranças daquele ser estranho que percorria os dias de São Pedro com suas botas furadas, suas musiquinhas de cordel e o seu desejo silencioso de um dia voltar a fazer parte daquele lugar.