quinta-feira, 7 de julho de 2011

Texto deste mês de julho em minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha.

                                                                    Visita ao Vampiro de São Pedro


Cheguei ao distrito de São Pedro do Jequitinhonha depois de quase dez anos sem visitar o lugar. Acompanhava as mudanças somente pelas cartas que o Vampiro me enviava, contando as novidades. A aposentadoria dos velhos escaleres ainda provocava uma estranheza vazia e doída. Lembranças da travessia vagarosa, de mãos no rio, pareciam aquietadas. Só o vento tinha jeito de infância. O lajedo ainda possuía o mesmo brilho, mas o motor do barco não dava muito tempo para contemplações. Meninos jogando tarrafa, em busca de peixe ou de estórias; Casais namorando dentro d’água, ensinando-nos a expressão do amor molhado; Lavadeiras de sorriso fácil e de vestidos coloridos; A algazarra do mercado; Os campeonatos de argolinha; E a bola rolando frenética no campo de futebol pertenciam ao passado. Não sei se meu ou do Vampiro. Absorto com tudo aquilo, parei na rua Tamburi. A partir dali devia seguir as instruções do mapa feito pelo Vampiro. Atravessei o córrego Tamburi e entrei em uma trilha descuidada e triste, repleta de tanajuras. No final da trilha havia um barranco que eu deveria subir. A casa do Vampiro ficava lá em cima. Ele estava na varanda cinza, sentado com seu chapéu de palha, sua bengala azul ao lado e sua capa preta inseparável. Perto dele ainda estavam a vasilha de doce de leite e o abandonado “Berro”, enfeites naturais. Na varanda só havia uma cadeira desbotada de onde o Vampiro observava as suas terras enfezadas. E na porta de entrada, dois imensos quadros davam as saudações. Um com a imagem do Bicho da Fortaleza, vários escritos indecifráveis e uma palavrinha minúscula e visível, a única: amigo. E outro com a fotografia de Ângela Ro Ro e uma tarja branca no pé do quadro com a letra da música “Simples Carinho”, a preferida do Vampiro. Dentro da casa tudo estava adormecido. A mesa, onde ficavam a antiga máquina de escrever, a rapadura (o Vampiro não gostava de sangue, mas de rapadura) e o requeijão, preferencialmente, escuro; A cadeira, que servia como guarda-roupa e como comodidade para visitas, praticamente escassas; Um aquário cheio de lodo e de lambaris do Jequitinhonha; Uma cama constantemente desarrumada; Uma coleção do jornal Geraes, que circulou no Vale de 1978 a 1985; E uma carta que recebera de Francelino Pereira, ex-prefeito de Jequitinhonha. A carta era o xodó do Vampiro. Fora uma resposta às reivindicações e aos abaixo-assinados que os moradores de São Pedro fizeram no início da década de oitenta contra o governo de Francelino. “Naquela época, o distrito de São Pedro sofria com o abandono, com a destruição que a enchente de 79 causou e com a violência policial do cabo Antônio e do capitão Getúlio Valadares. Após o misterioso assassinato do cabo Antônio, a violência se intensificou. Pegaram o meu amigo, o balseiro Juscelino, e Lero Hora Errada para Cristo. Aí tivemos que reagir”.
Essa era uma das raras vezes que a fala do Vampiro deixava o tom amargo e monossilábico. Por isso, mesmo tento escutado esse caso por diversas vezes, sempre ficava atento, procurando um novo acréscimo de personagens ou palavras. “São Pedro lembrava a França de 1848. Francelino teve que nos atender. E como bom político que foi, mandou-me esta cordial carta que guardo com respeito.” O Vampiro alisava a carta, mas, na verdade, queria alisar o tempo. Olhou pela janela. “Sabe aquele Tamarindeiro? Brincava lá na minha infância. Ficava horas e horas sentado em suas galhas, esperando os canoeiros descerem o rio, cantando beira-mar.” O Vampiro se calara. Percebi que era hora de partir. Despedi-me dele com a sensação de que nunca mais o veria. Não existia espaço para o Vampiro no São Pedro moderno. Tudo estava diferente. Naquele São Pedro a figura do Vampiro andava desapercebida. O que restava era a poeira da rua. Só a poeira da rua continuava a mesma, soprando as lembranças daquele ser estranho que percorria os dias de São Pedro com suas botas furadas, suas musiquinhas de cordel e o seu desejo silencioso de um dia voltar a fazer parte daquele lugar.