quarta-feira, 24 de novembro de 2010

um poema qualquer, feito dos suores da palavra...

Girassol

O suor pinga na mesa de barro
                                                     E um vago ai de Penélope o assusta.
                 Um gemido rouco
                                               Transparente
      bebe o suor em três beijos  
                           Beijos de varanda
           Beijos cor-de-sol
                           Beijos calados de uma moça feroz que pintava o muro
            com o sangue e o sarcasmo da chuva.

sábado, 13 de novembro de 2010

Texto pertencente a minha coluna no jornal Informativo

Um Jequitinhonhense na Biblioteca de Mário de Andrade
Agradecimentos a Fernando, da Heferauto, memória viva deste município.

Já era tarde da noite e a solidão o consumia. Nada consome mais um autor do que a solidão essencial de sua obra. Ele queria terminar o livro “As Revelações do Príncipe do Fogo”, mas não conseguia. O barulho no quarto era mais alto do que o som das palavras, que se contorciam em cheiro de latrina e vozes de insurreição. Então, ele se imaginou na Biblioteca de Babel. Gostava de se imaginar ali, onde a vida não tinha feridas. Onde as prateleiras não excluíam ninguém. As paredes da Biblioteca de Babel foram erguidas por tijolos de vidro, mágicos tijolos que duplicavam a ilusória biografia dos homens. E os livros desta biblioteca nunca se repetiam. Os livros repetidos sempre pegavam fogo e viravam pássaros mudos. A biblioteca parecia imensa. Tão imensa que nem Deus a compreendia. O curto transe fora interrompido, a janta chegara. Sopa novamente. No manicômio onde vivia era assim, a sopa possuía uma fidelidade que os homens desconheciam. Depois de tomar a sopa, deitou-se e pôs-se a pensar na vida. A cicatriz tatuada no peito ardia como o livro que ainda não conseguira terminar. Na tatuagem estava escrito: o filho da luz. Nada anormal para alguém órfão. Começou, então, a refletir sobre o seu nome. Chamava-se Febrônio Ferreira de Matos Índio do Brasil. E o personagem principal de seu livro se chamava Pedro. Ambos eram pobres, negros, homossexuais, loucos e assassinos. Coisa típica dos mágicos tijolos da Biblioteca de Babel, misturar autor, obra e personagem. Os mágicos tijolos gostavam de escutar a voz das minorias.
Febrônio ainda sentia as fortes dores do último tratamento de choque. Curiosamente, ele contava os hematomas que tinha no corpo. Tinha que dar número ímpar, pois ímpar era sorte, queria dizer que ele não apanharia. Porém, muitas vezes o ímpar foi insuficiente. Febrônio, portanto, tomou birra dos números. Mesmo assim, sonhava com o dia em que o número de seus hematomas ultrapassasse o número de livros da Biblioteca de Babel. O único amigo de Febrônio no manicômio era Zeus, uma lagartixa sem rabo. Zeus era uma branquela azeda. E tinha esse nome em homenagem ao Deus mitológico grego. O Zeus da mitologia foi famoso por sua infidelidade. O Zeus lagartixa também, não podia ver um rabo de lagartixa que logo se assanhava. Febrônio conversava muito com Zeus. Guardava até sopa para ele. E ficava furioso quando Zeus não o visitava. “Deve estar pendurado em algum rabo de lagartixa!”, exclamava. Sete dias após a primeira tentativa de terminar seu livro, Febrônio finaliza-o. Nesta noite não quis visitar a Biblioteca de Babel. Seus pensamentos estavam ocupados demais. Ele, agora, pensava em fugir do manicômio. Até a conversa com Zeus fora rápida. O que disse foi apenas um: “Amigo, até breve, volto quando for famoso!”. E Zeus foi correr atrás de outro rabo de lagartixa. Depois da comovente despedida, Febrônio consegue abrir a porta do seu quarto com um palito de fósforo, que ele transformou em chave. Depois, ele correu para o pátio do manicômio e fugiu nas asas de um ébrio pirilampo. Na rua, Febrônio começou a visitar os bares do Rio de Janeiro para vender seus treze exemplares de livro, que conseguiu tipografar no manicômio. Em visita à Lapa, encontra-se com o historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, que compra um dos livros de Febrônio. Logo em seguida, a polícia carioca realiza uma operação policial no bairro da Lapa e prende Febrônio, que tentava vender o terceiro exemplar de seu livro. Ele não conseguiu. Foi preso antes, morrendo velho e cansado, em 1984, no mesmo manicômio de que fugiu. Zeus também morre no mesmo dia, deixando cento e sessenta e nove lagartixas viúvas. Há quatro anos, o cineasta e professor da USP Carlos Augusto Calil encontrou o segundo exemplar do livro de Febrônio na biblioteca do gênio modernista Mário de Andrade. Este exemplar tinha na capa os seguintes dizeres: “Admirável!” e “erudição deliciosa!” Febrônio, então, conseguira a solidão essencial e outra coisa mais: ser o único jequitinhonhense presente na Biblioteca de Babel.
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