terça-feira, 14 de junho de 2011

Texto deste mês de junho em minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha.

                                                                    O Voo da Borboleta


As cortinas do céu se abriam e a lua se desocultava em preces sentidas. Ele resolvera sair de casa. Tinha o estranho hábito de visitar a praça da Matriz de São Miguel todas as noites após o último badalar do sino. As ruas ainda estavam molhadas de chuva. Mesmo assim, sentou-se no banco encharcado que julgava ser seu. Deitou-se lá despensando a vida. Desquerendo o tempo. Olhava-se em absoluto reflexo. Refletia-se na brisa que soprava indormente do Jequitinhonha. A sensação era a de que ficava. Fazia parte dali. Enfiou a mão vazia no bolso e retirou o papel amarelado que o acompanhava em suas andanças. Era um trecho do poema “Amantes Submarinos”, de Murilo Mendes: “Esta noite eu te encontro nas solidões de coral/onde a força da vida nos trouxe pela mão”. Não sabia o porquê, mas estes versos alegravam-no. Enchiam-no de um mistério indecoroso. E amorteciam suas desconfianças. Orgulhava-se de suas desconfianças. Era nelas que morava. Era nelas que se perdia. Era nelas que convicções, crenças e bobagens metafísicas se interrogavam. Naquele dia na praça, nenhuma lembrança da infância saltou da memória. E nenhuma saudade gritou ou enrouqueceu de propósito. Ele queria só contemplar o espaço nulo e circular.
De repente, a noite, cheia de intervalos de escuridão, recolheu-se ao seu recinto indefeso. Uma borboleta vagalumiou o rosto Dele, trazendo uma luz lembrada. Ela riscara as sombras circunstanciais com seu brilho bonito e sentido. Ela acendera a chama da segunda realidade com suas asas huber-discursivas que barulhavam um som dolente e identificado. Suas asas cantantes e desencontradas entoavam a música “Não vá embora”, de Marisa Monte, deixando-o obnubilado. A Borboleta dançou o imprevisível, dando Nele uma espécie de abraço inteiro. Surpresa que sublimou a melação cotidiana, deixando a vida sem previsibilidade, fora dos clichês. Aquilo era novo e não familiar. Era estranho para Ele. O voo dançante da Borboleta adormeceu suas desconfianças no para sempre. Seu coração jurava indistintamente, incontrolavelmente. Um coração insone sob atos falhos de um “eu” que se duplicava em um “nós” desconhecido, convertendo-se em polissemias contantes repletas de expressão e destituídas de contudos. As flores da praça pareciam furtar a Borboleta para si, ciumentas. Mas, já não era mais possível furtá-la. Ele a roubara para o reino particular dos amores submarinos, subtraindo-a de um pulsar próprio de Borboleta, entre o fôlego e o suspiro.
Ele tentava respirar e encontrar uma explicação para aquilo. No entanto, tudo acontecia como se fosse a primeira vez, enchendo o momento de etecéteras. Certo e Incerto ao pé do ouvido. Trechinhos de excesso consecutivos e corpóreos. A Borboleta olhava para Ele com olhos pensantes que resumiam a literatura em um apenas de coincidência, sendo isto e aquilo, isto ou aquilo, nem isto e nem aquilo e tudo isto e tudo aquilo. Ele sentia-se queimando em sonho e mergulhou sem pavor na noite cardioproposital. A Borboleta pousou no banco da praça onde Ele estava. Ela era toda soma, desejo ambíguo e reticência. Ela e Ele pareciam contemplar-se integrados na distância, no perto. Foi quando a Borboleta voou e o levou consigo, parando a rotação do mundo em suas asas. Ele e Ela juntos no destino do infinito. Ela e Ele juntos na região abismal à espera que o irreal nunca se levante e que a aurora nunca chegue perto de suas imagens retornantes à água do Paraíso. Nesta noite, as flores da Matriz choraram o instante. E todos os dias, às dez da noite, uma estranha música ecoa de suas pétalas iluminadas, triste lamento pelo voo da Borboleta.