quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Texto da minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha

A Moça Fantasma do Beco do Funil

   Tinha as seguintes palavras tatuadas no corpo: “Sou loura, trêmula, blândula e morena esfogueteada. Ando na rua a meu lado, colho bocas, olhos, dedos pela esquerda e pela direita.” Eram versos do poema “Desdobramento de Adalgisa”, de Carlos Drummond de Andrade. Mas, a Moça fantasma não os escolhera. Não escolhemos os poemas. Eles nos escolhem. E a escolha é porque Ela também se chamava Adalgisa. O poema escolheu a Moça. Nome de musa. Mãos de Bruma. A Adalgisa do Beco do Funil. A Moça que se alimenta das noites ardentes e que bebe as sombras indivisíveis. A Moça Fantasma que não sente o amor respirar. Para ela, o amor pulsa, mas não respira. Pula, mas não respira. Por isso, a Moça espia. Todas as noites ela anda pelo Beco do Funil.  Anda e ninguém a vê. Apenas a sente. É possível sentir seu perfume de buganvília doce. É possível sentir sua presença de fantasma, dorzinha leve, leve, aceno estomacal. Vê-la, no entanto, é impossível. O seu vestido cor-de-arco-íris ninguém repara. Ninguém elogia. Ninguém inveja. Ninguém brinca em suas curvas de Moça sonora. Tocá-la em seu silêncio de desencontro é um gesto perdido que muitos bêbados já tentaram naquele Beco escuro. O que conseguiram? Só mais um gole de susto.
   Ela não fala. Tem o silêncio dos fantasmas. Sua voz são luzes que aparecem e desaparecem, feito pirilampos. De vez em quando ela sente uma inquietação religiosa, pois o sino da Matriz de São Miguel é tão vocálico que espasma os desejos de Moça Fantasma. Mas logo voltam os desejos. O Beco os recupera. O Beco é seu hábito. O Beco é seu marido. O sonho da Moça Fantasma era ter um marido. Ela queria se casar, ter filhos, ter uma família. Mas Fantasmas não casam, é cláusula pétrea de Fantasma. Fantasmas estão presos na eternidade. Fantasmas estão nas Pedras da Cidade. Deve ser porque não pode casar que Ela nunca entrou na igreja. Todo casamento que acontece na Matriz a Moça chora, do lado de fora. De casamentos ela não gosta. Ela chora o choro da Chuva. Chora o choro do gigante Polifemo. O choro dos poetas árcades. O choro melancólico dos poetas mineiros. De vez em quando também seu corpo brinca de iluminar as águas do rio. Ela gosta de se olhar no espelho do Jequitinhonha. Não fica muito tempo assim. A alegria logo, logo é levada pela correnteza. A alegria é um desaguar passageiro.
   O que a moça tem até parece quebranto. Não é não. O que ela tem é calundu de peito e pirraça de alma. Dói nas entranhas impreenchidas. Uma dor capaz de afetá-la. Capaz de endurecer aquele corpo fantasma. O que a moça tem é algo que só vem em véspera de natal. Um querer incompreendido, suspirante. Um querer de família. Algo que vem nas bordas dos ventos de dezembro. É o natal sim. Nada a ver com Papai Noel não. Tudo a ver com sentimento. Nessa época do ano a Moça Fantasma do Beco do Funil perde o desejo de assombro. E o que ganha mesmo não são presentes. É dor. Dor da falta de um abraço. A moça não tem memória não. Só há a tatuagem. A tatuagem é sua identidade. Tatuagem que ninguém vê. E a tatuagem também queria um abraço. Queria sentir outro corpo. Queria entender essa sensação. Ninguém vê. Porém, nas noites de natal a Moça Fantasma do Beco do Funil se senta sobre a caixa d’água da Copasa.  Ela fica em silêncio escutando as ceias. E a alegria que sai das casas a cega. Nesta noite a Moça Fantasma não pode ver. Nesta noite ela percorre todas as ruas de Jequitinhonha sem levar uma lembrança sequer. É a única noite que ela se afasta do Beco. Aquele Beco que olha a cidade. Aquele Beco que escreve histórias. O seu Beco. A sua residência. Pena de musa. Bico de Noite. Lugar de mistério. O Beco do Funil, que afunila várias vidas. O Beco. O Beco da Moça Fantasma.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Violino em Cordas de Prosa

De noite ainda vejo o violino quebrado sobre a cama. Minhas palavras vastas escorrem em cordas de voluptuosidade, afagando geometricamente tuas coxas de marfim. O nosso poema, Violino Maria, de Juan José Ceselli, ainda me olha solitário. Solitário e perfumado. Solitário e uníssono. Sua voz ainda está nele, perfumada. Seus brincos ainda estão nos meus bolsos, gastos. Os dois, ambiguamente. Não sei. Talvez, eu jogue dominó hoje. E olhe a lua pela sacada, imaginando que tua bunda seja uma peça de Cacilda Becker. Ouço o violino, oco, oco, oco. Abro o baú no sótão. Só há uma boneca estilhaçada. Os braços dela lembram os seus: um cometa Halley. Ouço também nosso grilo de estimação. Escutei-o a noite inteira. Montes Claros faz calor. Sei que é mesmice. Lembra quando falávamos banalidades? Nunca enchi o saco desta límpida loucura que vivemos, das nossas brincadeiras de vidro. Ontem, fui à rua dos cataventos. Nosso último beijo ficou lá. Lá deixei também meu último verso pra você. Aquele mesmo que escrevi em sua lápide secreta: há tanta pedra que procuro o calor de seu líquido sarcástico.