domingo, 31 de outubro de 2010

Este texto pertence a minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha

Duas Mortes

Saiu de casa apressado. Não beijou a filha. Não se despediu da mulher, que levantou às cinco da manhã para preparar-lhe o café. E não percebeu que Pois é, o cachorro da família, estava solto na rua. Zeca pé-de-boi, apelido que recebeu quando foi o Boi Janeiro, na cidade de Jequitinhonha, não tinha tempo para mais nada. Nem para sorrir. Ele se mudou para Contagem há quatorze anos. E nunca mais retornou à Jequitinhonha. A mulher e a filha eram loucas para conhecer a terra natal do Marido-Pai, mas Zeca desconversava. E sempre adiava a viagem. As insistências da mulher e da filha traziam de volta lembranças, que causavam uma dor breve, escorregadia, certeira.
À noite chegou do trabalho, cansado. Jantou em silêncio. A mulher já dormia. E a filha estava no quarto, conversando com as amigas no MSN. Pois é tinha voltado para casa com um osso grande e procurava enterrá-lo no quintal. Zeca era cruzeirense doente. Não perdia uma partida do time na televisão. Mas, nunca assistiu a um jogo no Mineirão. As multidões não mais o interessavam desde que deixou Jequitinhonha e o Boi de Janeiro. Levava uma ausência que não conseguia compreender. Levava um silêncio que não o deixava sorrir. Todas as noites ele cochilava no sofá antes de se deitar. Aproveitava a dispersão da filha e da ausência da mulher para lembrar das peladas que jogava na praia. Nunca fora habilidoso, mas fazia muitos gols. Esses gols fizeram com que ele fosse, enquanto morou em Jequitinhonha, o artilheiro do Internacional. Orgulhava-se disso. Tinha uma camisa do time guardada no fundo de seu guarda-roupa. Fez dois gols contra o Náutico, na final do campeonato de 1983, que foram inesquecíveis. Neste dia, deu até entrevista à rádio Santa Cruz.
Porém, o que guardava mesmo, só que no guarda-roupa da memória, era o Boi de Janeiro. A música não saía de seus ouvidos: “Povo de Jequitinhonha/Venha apreciar/venha ver o boi janeiro/que aqui não há/ Povo de Jequitinhonha/venha dar valor/venha ver o boi janeiro/passando em flor”. Quando se caracterizava de Boi e corria atrás das crianças pelas ruas de Jequitinhonha, esquecia-se de si, do cansaço, da vida. O Boi era sua armadura contra a vida difícil. Tempos difíceis aqueles. Mais difícil ainda foi sua decisão de ir embora e deixar a sua armadura. Entretanto, tinha que ser. Não somos senhores de certas escolhas, isso que é. Zeca também levou embora um pesar. Na sua despedida, como Boi de Janeiro, teve uma dor diferente, mais escorregadia e certeira do que de costume. O povo entoava “e o bofe/ é de seu Jofre/ ai ai ai janeiro morreu” e escutaram uma janela se fechar. O Boi de Janeiro fora substituído por novelas. Isso entristeceu Zeca. Ele teve a sensação de que o Boi tinha morrido. No outro dia, decidiu ir embora para nunca mais voltar.
Acordou sonolento no sofá. Era hora de trabalhar. A mulher e filha não tinham levantado ainda. Decidiu, então, não acordá-las. Foi para o trabalho mais cedo. Sentia-se estranho. No ônibus, queria ficar sentado sem pensar em nada. Mas, a música vinha cada vez mais forte, escorregadia, certeira. Aumentava cada vez mais. Saiu sôfrego do ônibus e no pátio da empresa não conseguiu ficar em pé. Caiu. Teve um enfarto fulminante. A mãe e a filha decidiram que ele seria sepultado em Jequitinhonha. Lá, já no caminho da capela do hospital São Miguel para o cemitério, os amigos começaram a cantar a música do Boi de Janeiro. Estranhamente, a Mulher e a filha de Zeca, agora, compreendiam o silêncio dele. Estranhamente, dentro do caixão, Zeca parecia sorrir. Um sorriso que não se via desde que saiu de Jequitinhonha. Um sorriso do Boi de Janeiro passando em flor.

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