quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Texto produzido em parceria com a minha indizível amiga, Elaine Maciel.

Armazém Metodológico

Tudo nos espiava. As mesas vadias, os copos sentimentalistas, os buracos incandescentes do teto e as bonecas de porcelana do Mercado Municipal. Traziam de fora o vento e um cheiro indiscreto que subia pelas nossas narinas num ímpeto criador. Que foi este cheiro a nos embriagar com tal torpor? Confessamo-lhes, óh desavisados leitores, não sabemos. Afinal, a imagem evocava outra imagem e, misteriosamente, surgiu a vagabunda enlouquecida que dizia ser O Cheiro de Deus. Vagabunda alegórica esta. Vagabunda metafórica esta. Vagabunda sem rosto-desgosto, entre o não-ser e o ser tão. Aconteceu que, num movimento erótico, a obscena senhora vagabunda inscreveu em nossas carnes o desejo de transgressão. Fale vagabunda! Ande perto dos corações selvagens! Grite sonoramente a cidade ilhada! Coma a feijoada de Seu Belo! Dance o olhar melancólico de Emílio Moura! Divirta os desatinos dos vadios! Desvista-se da Menina do Sobrado! Olhe-se no espelho e veja, e reveja sua face Iracema, Senhora, Lucíola. Não, a vagabunda não respondeu. Vagabunda que se preza não cumpre imperativos, canta em vozes ressonantes as poéticas libertárias, o não-senso, a não-ordem. Abaixo o despotismo! Vagabunda que se preza rasga a roupa; escancara o peito; vomita o verbo; e cospe as imagens, sons e palavras em suor maior. Vagabunda que se preza apunhala o coração destoante e destoado com o veneno ambivalente da literatura infantil. Vagabunda que é vagabunda reinventa o poder do sertão, colhe os últimos gemidos da lavoura arcaica, destece a luz do risco bordado e abre uma fissura incalculável no corpo da pedra-educação, do espelho-duplo. No sem margem da memória, onde o Cheiro de Deus nos estuprou, restou a imagem perdida da Vagabunda enlouquecida, vagando o mundo escondido nos cantos sujos do armazém. Neste armazém de palavras, a vagabunda se divertiu e riu de nossa cara pasma. Riu, demoradamente, de nossa falta de inspiração. De nossa dor verbal. Riu, porque sabe que é fantasma. Nosso fantasma. Criação de aprendizes. Parte insignificante desta tentativa de contar. Um contar estranho que se intitula palavra, um esquecer para lembrar.

*Este texto foi escrito no mercado municipal de Montes Claros, acompanhado da musa cerveja. Ele tem apenas uma má intenção: contemplar os projetos do mestrado em Letras/Estudos Literários, da Unimontes. A ideia de escrevê-lo nasceu nas aulas de metodologia da pesquisa, ministrada pela professora Telma Borges.
*Este texto está disponível também em: www.cch.unimontes.br/literatura.

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