quarta-feira, 16 de março de 2011

Texto de março na minha coluna do jornal Informativo, de Jequitinhonha

O ARTESÃO DAS PALAVRAS

Em “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Walter Benjamin afirma que o narrador não está mais de fato presente entre nós e que ele é algo distante, e que se distancia ainda mais. Benjamin atribui a quase extinção da arte de narrar à falta de experiência das pessoas de “hoje”. Ninguém vive mais as próprias experiências, mas as experiências alheias. Por isso, o embargo na fala. Por isso, a dificuldade em narrar. Em interessante trabalho intitulado “O artesão da memória do Vale do Jequitinhonha”, Vera Lúcia Felício Pereira traz o registro de histórias contadas pelos antigos habitantes do Vale do Jequitinhonha com o objetivo de começar a desvendar (já que nunca desvendamos nada por completo) o caráter intercultural dessas narrativas, que transitam entre o erudito e o popular. Na verdade, o ponto nevrálgico do trabalho da Vera é essa transição entre o erudito e o popular presente nas narrativas orais do Vale, já que ela defende que há uma verossimilhança entre as histórias daqui e as histórias de lá (histórias de nossos colonizadores). Talvez, a tese da Vera se comprove em alguns contares. Mas não em todos. O vício acadêmico muitas vezes nos cega. Então, temos que desanuviar a nossa cegueira.
No trabalho da Vera Lúcia sobre o Vale há dois esquecimentos. Primeiro, ela esquece a região do Baixo Jequitinhonha, pois trabalha só com narradores do Alto e do Médio. E depois ela esquece o narrador de Benjamin, aquele que semelhante à Leskov, é mais enraizado no povo e mais livre de influências estrangeiras. Em Jequitinhonha há um exemplo desse narrador benjaminiano esquecido por Vera Lúcia Felício Pereira. O nome dele é Valmique Mendes da Silva. O Micão. O dom dele é poder contar sua vida. E sua dignidade é contá-la “inteira”. Se formos à rua Bento V, encontraremos o Micas esculpindo as suas geladeiras e as suas histórias, prontas para desfilarem no grande palco jequitinhonhense. Lá, escutaremos Jequitinhonha se contar no jogo do saber-sabença. E veremos o senso prático do narrador inato e a experiência que passa de pessoa a pessoa. Esse é o Micão. O Heródoto que não explica o que conta, apenas conta.
Conta casos como quem dá conselhos. Conta casos como quem vive um épico dom quixotiano. Uma palavra e os mitos, os ritos e as reminiscências se encontram em uníssona voz. A voz do Micas. A voz que ressoa como a mão do oleiro na argila do vaso. E do verso. E é assim que Micas remenda um “causo” no outro. O “causo” da sem-terra que usou o vestido como pára-quedas. O “causo” da carroça que tombou na carreata da vitória de Roberto.  E vários outros “causos” que vão de pescarias a idas ao dentista. Nesses “causos”, Micão se conta. Ele se conta e vai além da permanência e do dispensável. Faz-nos lembrar das reuniões em torno das fogueiras, nas portas das ruas ou na cozinha de casa. Hoje, a televisão e os hábitos modernos nos tiraram muito do que Micão nos devolve com seus casos: o de vivermos as nossas próprias experiências. Assim, ao nos devolver o hábito de negociarmos com nossa própria vida, Micão traz uma personagem rosiana, o Velho Camilo, para a realidade jequitinhonhense. O velho Camilo instruía as letras, mas que não comportava por dentro, não construía a cara dos outros no espelho. Só se a gente guardasse de retentiva, cada pé-de-verso, então mais tarde era que se achava o querer solerte das palavras, vindo de longe, de dentro da gente mesmo. Micas, como o velho Camilo, instrui as letras, moldando-as em barros de vida e fatos do vivido. Seus casos embriagam os ouvidos e fazem ressurgir lacunas de memória, contos, lendas e provérbios guardados desde a infância. Tudo isso em cada pé-de-verso achado no solerte das palavras, que mais tarde, vem de longe, de dentro de nós mesmos. É esse o narrador de Benjamin que a Vera, infelizmente, esqueceu. É esse o narrador Micão. O narrador que é a figura na qual o justo se encontra/reencontra consigo mesmo.

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