domingo, 15 de abril de 2012

A cerca das vozes fantasmas




Guaraciaba seguia a procissão da Semana Santa. O sol queimava seus cabelos vermelhos e provocava um ruído estranho em seu nome e em seus ouvidos. Escutava uma voz plena, forte, que vinha de um lá não sei onde. Ele a desentendia. Fingia não querer escutá-la. Sua avó, Anauá, dizia que as terras do povoado de “Palmassu”, pamonha, em indígena, eram assombradas. Guaraciaba prosseguia, incerto. Tinha uma incerteza no peito. Qual de nós não tem? Deambulava sobre o lajedo. Perseguia as vozes que sumiam na horizontal do céu, descambando para os lados do distrito de Caju, no município de Jequitinhonha. A poeira grudava em seu rosto. De longe, uma oração: “Ó Luz, Poder Supremo!/ Ó Sombra Incriada Onipotente, alimento da nossa vida e da nossa morte,/ fazei com que possamos realizar em Ti tudo aquilo que o teu onipotente pensamento nos ordena./ Assim seja!”
Ouvia vozes, diversas. Mas, nunca as compreendia. Exceto o pedido de socorro, som rouco que permanecia em sua memória apática. Lembrava-se da avó e dos casos que ela lhe contava. A cerca de pedra estava ao lado da procissão. Ambas pareciam cúmplices. Não se sabe quando a cerca fora construída. O que se sabe é que servia para demarcar as terras na época em que inexistiam arames e madeiras. Ela rodeava o lajedo das jabuticabas. A procissão se aproximava da cruz. Guaraciaba sentiu uma vertigem, uma agonia. Escutou a oração da morte: “Ó meu Deus! Ó Tu que perdoas os pecados! Tu que concedes dádivas e afastas aflições!/ Suplico-Te, verdadeiramente, que perdoes os pecados dos que abandonaram as vestes físicas e ascenderam ao mundo espiritual./Ó meu Senhor! Purifica-os das transgressões; as tristezas, desvanesce-lhes e transforma sua escuridão em luz./ Permite que entrem no jardim da felicidade, purifiquem-se com a água mais límpida e, no mais sublime monte, contemplem Teus esplendores.”
Cada um fazia o sinal da cruz e colocava uma pedra em cima da sepultura. Esta estava repleta de mensagens e pedidos. Transbordava em pedregulhos. Um nome chamou a atenção de Guaraciaba. Sim, era ela. Cunhapora. A índia de que sua avó tanto lhe falou. A índia que tinha morrido à beira da cerca, assassinada pelo jagunço Andirá. A índia que aparecia para os romeiros na Semana Santa. A índia que tanto assustava a população de Caju e do “Palmassu”. A índia que cantava em noite de lua cheia: “Hê, hyá, hyá, hyá!”. Guaraciaba fez um tímido sinal da cruz. Não quis rezar. Deixou uma pedra na sepultura e foi embora, pasmo.
À noite, já deitado, lembrou-se da índia Cunhapora. Voltou ao lugar onde estava a sepultura da índia. Vozes se intercalavam na noite. O vento gelado contrastava com o calor de seu corpo intranquilo. Guaraciaba caminhava sem rumo. As vozes pareciam persegui-lo, acompanhá-lo. Não conseguia identificar nenhuma palavra que cruzava o breu incorpóreo. De repente, escutou uma voz grave: “Hê, hyá, hyá, hyá!” Era o canto de Cunhapora. A voz se tornava mais forte. Guaraciaba se deparou com a sepultura da índia. As pedras iluminavam o escuro, movendo-se sobre o lajedo. A lua se ocultava sob as nuvens. Vários vultos cercaram o índio. O herói jequitinhonhense não mais falava. Estava em êxtase. Em catarse. Uma imagem surgiu sobre a cerca das vozes. Tinha cabelos negros como a noite. Corpo moreno como as águas do córrego das pedras. Era ela. A índia das histórias de infância. Cunhapora apareceu e tocou o rosto de Guaraciaba. E ele nunca mais fora visto pelas redondezas do Caju. Dizem que virou pedra. Mas, não se sabe. Não se sabe...

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