sábado, 10 de março de 2012

Duas histórias no Rio Jequitinhonha

Diamantino nada todos os dias até a pedra do Sapo. Senta-se lá por horas e horas sem perceber o correr do tempo. Gosta mesmo de ver o “poer-do-sol” se machucar nas pedras, o chacoalhar das águas, a lua nascendo e se olhando no espelho d’água do rio. Mesmo gosta é do correr do rio, por dentro, por certo, descompreendendo a vida. A terceira margem. O sertão. Ambos se espiando. Aqui, o sertão é derrotado pela força do homem e da mulher, dos braços suados. Uma música de longe vem, do século XIX. É travessia, Beira-Mar. “Chora morena,/ chora morena,/ chora morena,/quando cê for,/ cê me leva, morena.”
Mané Branco, o romanceiro do Vale, era do “tempo do camisão”, “do tempo do calção”. Olhava a “brabeza” das águas num ser ou não ser. O embornal estava cheio. De Peixes e Amor. Lembrava-se de Dona Zina. “Apesar de ‘ispiculadora’ da vida alheia, ela é minha saudade latente”. No Vale, a beleza pesa mais, vale mais que a miséria. Sabia disto. Cresceu ouvindo isto. Ouvindo a terra. Ouvindo os sons do Jequitinhonha, apesar de. Outras memórias vinham, escorriam escorregadias. Fazenda Boa Vista do Calhau. Lá deixou Mirtes na pedra do Rei, na escuridão assombrada da noite. Dona Luciana Teixeira, a mulata meretriz, tinha seu respeito, sua opinião. O padre Antônio Pereira Freire, não.
Diamantino via. O “rio agora é outro”. “A vida é outra”. Sem praia, sem pelada, sem graça, sem banho, sem sal. Suas águas não rolam mais. Não dá mais para ir a pé pelas praias, inundadas, imersas de casos e de caos. Não havia mais o rio empolado do gigante Itamonte, de Vila Rica, rico em pedras rútilas e mercúrio. Não havia mais o feliz Jequitinhonha do amante Satisfeito, de Glaura.  Não havia mais as luzentes vagas do rio da Vênus do Vale, do Romanceiro da Inconfidência, da Chica da Silva que mandava no contratador João Fernandes. Não havia, não havia mais o rio Grande, o Paticha, o Iguaçu, tudo era, agora, sensação agonística, um afastar-se do “trem bonito”.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida adornava a canoa de Mané Branco e servia para protegê-lo dos Botocudos; do Quebra-Cara; da sequidão que minguava viagem; da “chumbera”; do Surubim gigante devorador de pescador; do rebojo da Ilha do Pão; e da Sucuri Belarmina. Num apesar de, raiva tinha também. Do canoeiro Cristóvão Benevides. “Benevides roubou o nome do meu escaler: Viramundo”. Amarrou na árvore a regera (corda) de sua canoa, que, por conta do homônimo, passou a se chamar Dona Zina. “É mais romântico”, dizia Mané.  Porém, quieto, pensava: “será que a Mirtes não vai enciumar?”. “Coração que ama duas/ que firmeza pode ter/ Ama uma em falsidade/ outra ama até morrer”. Ali, canoa e corpo pareciam se confundir no mais que humano, um sentidor estado-de-ser do canoeiro. Sentou-se na Pedra Redonda e comeu seu mingolim, feito com rapadura, gordura de porco e farinha.
Duas histórias presas nos atalhos curvos do rio se cruzam no tempo e no espaço, nas suas preocupações, nas suas trans-vidas. Duas histórias doem para se perpetuarem nas águas e nos fantasmas dos redemoinhos anfíbios. Porque o que o rio quer é o pacto com a mulher e o homem. O que ele quer são as estrelas indóceis desabando, os arco-íris indomáveis. A alegria que dá na poeira e no barro. O que o rio quer é ser Rosa. Ser Azul. Correr e Ficar. Ficar e Correr. O que o rio quer é desaguar, desmorrer, reviver, ressuscitar.

Um comentário:

  1. Adorei o texto. Lindo. Muito nostálgico. Traz uma saudade tão grande que chega a doer no peito.

    ResponderExcluir