segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Texto do mês de outubro da minha coluna no jornal Informativo, de Jequitinhonha

                                                                        
                                                                          A vida é assim

Depois de uma ausência descarnada de quase quinze anos, o mestrado me proporcionou morar, novamente, em Jequitinhonha, ainda que esse morar seja indefinitivo. Neste meu retorno, pude voltar a conviver e a ter o privilégio de conhecer pessoas como o Sr. Valdívio Gil de Souza. Conheci-o no bar Lambari, às margens do sossego brisante do Jequitinhonha, em uma sexta-feira matinal em que as sofrências da escrita da dissertação cederam lugar à boa prosa. Quando cheguei ao Lambari, acompanhado do meu tio Pedro, que passava férias na cidade, o Sr. Valdívio já estava tomando a sua cervejinha. Ao sentarmos na mesa ao lado da dele, notei que nos olhou desconfiado, quase pedindo um cumprimento. Fiz um gesto tímido com a cabeça, o qual logo fora interrompido pela chegada de uma cerveja canela de pedreiro, como diria a minha sobrinha Lorena. Após esse ínfimo cumprimento inicial, dispersei-me com os eloquentes assuntos de tio Pedro. Entre alternados lambaris fritos e goles de cerveja, conversamos sobre a construção da ponte e, consequentemente, sobre o lucro que vendedores de para-quedas terão em Jequitinhonha, uma vez que muita gente incrédula disse pularia de cima dessa ponte se ela fosse construída. Conversamos sobre a brilhante exposição “Cores e Movimento”, da artista plástica e pintora Marina Jardim, da cidade de Rubim, e sobre a encantadora exposição fotográfica acerca dos duzentos anos da cidade de Jequitinhonha que ficarão à mostra na Casa de Cultura de Jequitinhonha até o dia 28 de outubro. Conversamos ainda sobre a triste situação do cemitério jequitinhonhense e a falta de respeito e de sensibilidade com os mortos do nosso município, já que o cemitério não possui mais nenhum espaço e os túmulos se amontoam. E conversamos, sobretudo, besteiras de boteco, aquelas que não têm pretensão nenhuma e só servem para provocar risos fáceis.
E foi, então, interrompendo um desses risos, que o Sr. Valdívio entrou nesta coluna. Ele nos confidenciou que há muito prestava atenção em nossa conversa e, como estava sozinho, queria saber se podia participar do nosso papo. Dissemos que sim e ele começou a se escrever. Filho único, setenta e seis anos bem distribuídos e funcionário aposentado do DER, é dono de um sossego na fala e de uma felicidade contagiantes. Orgulha-se, entre outras coisas, de ter ajudado a construir, em 1965, a ponte de Almenara e de ter participado da construção de várias estradas do Vale. “A vida é assim”, era o bordão que o Sr. Valdir usava entre uma frase e outra. A vida é assim, comecei a refletir. A refletir e a anotar. Anotar no meu celular mesmo. Tomei nota de tudo que o Sr. Valdívio falava. Ele falava e eu anotava. E de vez em quando, perguntava-me: “anotou? Hoje, eu entro na história!” Anotei Sr. Valdívio! Anotei! E ele se divertia: “Ele gosta!” Gosto Sr. Valdívio, gosto! Um gostar que mesmo que eu quisesse, não saberia definir e tampouco fugir. Porque o Sr., Senhor Valdívio, é muito mais que um filósofo-beira-rio, construidor de estradas, de pontes e de frases do tipo: “Muita gente reclama que não teve sorte na vida. O porquê. Provavelmente, porque não dialogou. Na vida, é preciso ter diálogo.” Ou: “Comi o pão bem passado e mal passado da vida”. Ou então: “eu, tu, eles, nós, vós, eles, no singular e no plural”. O Sr., Senhor Valdívio, é muito mais que um caçador que, no passado, caçou no Bom Jardim e na Sapucaia. E muito mais que um pescador que relembra, saudosista, da época em que o rio Jequitinhonha tinha peixe de mais de 50 quilos. O Sr. é muito mais que um jequitinhonhense que sabe tudo de Aroeira, que se emociona ao falar dos filhos e que prefere andar de canoa à andar de helicóptero.
O Sr. é povo. Povo livre. Povo livre e Jequitinhonhense. É o povo que olha no além do horizonte com força descambaiante. Um olhar quieto em si mesmo, ensimesmado, e perdido no dentro do seu jeito onírico. O Sr. pertence a este povo jequitinhonhense que se oculta pelas ruas da cidade e pelos labirintos das roças cheio de história e de alegria para contar. Edgar Quinet, intelectual e historiador francês, certa vez disse que "Os povos livres são os únicos a ter uma história. Os outros, possuem apenas crônicas. São matéria para o erudito, e o gênero humano não os conhece." O Sr., Senhor Valdívio, vai mais além deste texto. Vai mais além das palavras. Vai além do mais além e da liberdade. Porque o Senhor construiu a sua história, a história desta cidade e a história do Vale independente de crônicas e de qualquer tentativa erudita de apreensão. O Sr., Senhor Valdívio, e outros tantos iguais a Você, possuem um segredo esfíngico que nenhuma academia é capaz de decifrar. É por isso, Senhor Valdir, é por isso que eu gosto. O povo possui uma sabença indecifrável e apaixonante que gosto de aprender, que gosto de sentir, pois aprendendo-a e sentindo-a, acabo aprendendo-me e sentindo-me. Aprendo, sinto e lembro daquele adolescente que deixou o município de Jequitinhonha há quinze anos com o desejo de mostrar ao mundo que não éramos o Vale da miséria. Não somos. E aprendi e senti isso não de fora para dentro através dos textos que li, leio e, certamente, lerei sobre o Vale. Aprendi e senti isso não nos seminários, congressos e tantos eventos dos quais participei defendendo e divulgando as coisas do Vale. Aprendi e senti isso aqui. Aprendo e sinto isso aqui. Aprenderei e sentirei isso somente aqui. Por isso, Senhor Valdir, é bom estar de volta e poder aprender e sentir, aprender a sentir, de dentro para fora, esta terra, lugar da sabença, lugar onde o povo é capaz de desconstruir até as “quase-certezas” de autores da corrente da desconstrução, como a do argentino Jorge Luis Borges, no texto “Aqui.Hoje”: “Já somos o esquecimento que seremos. A poeira elementar que nos ignora e que foi o ruivo Adão e que é agora todos os homens e que não veremos”. Parodiando-o e parafraseando-o, eu digo, então, em homenagem ao Sr. Valdívio: já somos a lembrança que seremos. E embora a poeira elementar, os ruivos Adãos e todos os homens que não veremos teimem em nos ignorar, estaremos. Aqui. Hoje. E Sempre. Sim, é gostoso dizer: a vida é assim!

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